GLUTARALDEÍDO: CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA?
Os que atuam há muito tempo na área de controle de infecção hospitalar ou de processos de esterilização e desinfecção poderão talvez se lembrar dos tempos pré-glutaraldeído. Eram poucas as formulações de desinfetantes químicos disponíveis no mercado nacional para a desinfecção de artigos semicríticos.
Na década de 70, no Brasil, trabalhávamos com o hipoclorito de sódio, altamente corrosivo e conseqüentemente proibitivo para o uso em instrumentos delicados; com as soluções de formaldeído, altamente tóxicas e com odor pungente e com as soluções de quaternários de amônio de primeira geração, que posteriormente revelaram-se um risco a saúde do paciente pelo seu baixo poder germicida. Com as interdições cautelares que ocorreram no final na década de 1980, a única opção de fato para a desinfecção de certos equipamentos passou a ser as formulações a base de formaldeído.
A introdução do glutaraldeído veio a preencher a necessidade, na assistência a saúde, de prover um método de desinfecção / esterilização a baixa temperatura, que possibilitasse boa operacionalização com custos toleráveis. Evidentemente, no momento da introdução deste princípio ativo no mercado poucas eram as opções de fabricantes e sua aquisição era considerada de alto custo. Entretanto, o seu tempo de ação (principalmente para o uso como desinfetante de alto nível, em 30 minutos), sua facilidade operacional (requer somente ativação e não diluição), bem como o dano mínimo aos equipamentos delicados (especialmente os endoscópios), foram determinantes para a utilização em ampla escala deste germicida. O formaldeído foi praticamente abandonado, ficando restrito apenas para esterilização de capilares de hemodiálise.
Com a ampliação do mercado, em um primeiro momento houve grandes diferenças qualitativas entre os produtos disponíveis no Brasil, sendo que soluções de alta qualidade restringiam-se a dois ou três fabricantes. Entretanto, com a evolução deste segmento produtivo no Brasil, o mercado foi invadido por formulações de maior competitividade, com poucas variações qualitativas entre si, tornando os preços cada vez mais acessíveis e potencializando a amplificação de uso deste princípio ativo, muitas vezes indiscriminadamente. Esta disseminação da utilização do glutaraldeído como esterilizante ou desinfetante de alto nível não ocorreu apenas no Brasil, sendo que este princípio ativo é o mais utilizado em quase todo o mundo na atualidade. Paulatinamente, começaram a surgir na literatura relatos de fixação e impregnação de matéria orgânica pelo glutaraldeído, com dificuldade de remoção da sujidade, favorecendo o risco potencial de infecção. Apesar da introdução, com sucesso, de germicidas alternativos, em função de sua boa relação custo-benefício, o glutaraldeído manteve-se na liderança.
Enquanto isto, gradativamente, o formaldeído foi sendo substituído pelo ácido peracético para desinfecção de capilares de hemodiálise e, mesmo que em ritmo mais lento, esta nova classe de germicidas penetrou na assistência a saúde no Brasil. Pode-se supor que o segmento da terapia renal substitutiva aceitou mais prontamente o ácido peracético por diversos motivos: a) o fato de assistir a pacientes com histórico reconhecido de eventos adversos relacionados a assistência a saúde torna este segmento mais sensível a introdução de germicidas menos tóxicos; b) o formaldeído, muito mais tóxico do que o glutaraldeído, possui tempo de ação prolongado e requer controle rigoroso de residual, c) os capilares de hemodiálise, embora sejam produtos frágeis, por sua composição, não sofrem corrosão metálica.
Mormente o mercado nacional tenha começado a se aquecer já no início da década de 1990, com alternativas para o uso de glutaraldeído não somente com as formulações a base de ácido peracético, mas com a introdução do plasma de peróxido de hidrogênio, contudo as dificuldades econômicas impediram uma maior penetração destes métodos. O ácido peracético passou a apresentar-se com formulações bastante diversificadas entre os distintos fabricantes, o que não permite uma generalização quanto aos seus resultados finais, no que se refere à compatibilidade com os instrumentos. Ocorreu também, a introdução no mercado nacional, de autoclaves de vapor de formaldeído a baixa temperatura, método este indicado para artigos termo-sensíveis como uma alternativa para o óxido de etileno. Entretanto, devido ao seu tempo de processamento, não se mostrou viável para o processamento de itens que requerem um rápido giro, como por exemplo, os endoscópios. Mais recentemente surgiram também o ortoftalaldeído e a água ácida, esta última indicada no Brasil apenas para o processamento de endoscópios digestivos.
Na atualidade existe uma tendência de substituir agentes germicidas com mecanismos de ação alquilantes (óxido de etileno, aldeídos) que são em geral mais tóxicos, por produtos com mecanismo de ação oxidante (peróxido de hidrogênio, ácido peracético), os quais são menos tóxicos, tanto para o paciente, quanto para o meio ambiente. Estes novos agentes são efetivos e, via de regra, mais rápidos e seguros.
No Estado de São Paulo, em avaliações prévias realizadas pelo Centro de Vigilância Sanitária (CVS), foram identificadas irregularidades no uso do glutaraldeído e falta de padronização de processos, culminando com a publicação, no ano de 2007, de uma normativa que determina formas de utilização e sistemas de controle para as instituições usuárias de glutaraldeído. As determinações contidas nesta normativa impõem uma série de restrições, particularmente no que se refere à área física para o manuseio do produto.
Ainda em 2007, a situação epidêmica do surto de micobactérias no Brasil, principalmente associada a procedimentos de videocirurgia, lançou dúvidas quanto à efetividade do processamento por glutaraldeído. A fim de conter a ampliação do surto, medidas radicais foram aplicadas pelos órgãos governamentais, como a proibição da esterilização química líquida pela ANVISA e a interdição do uso de glutaraldeído no Rio de Janeiro.
Recentemente, estudos de pesquisadores renomados no país identificaram a possível resistência do Mycobacterium massiliense ao glutaraldeído, lembrando que esta espécie foi a principal envolvida no surto ocorrido no país. Este fato culminou na exigência, por parte da ANVISA, de que os fabricantes de saneantes para desinfecção de artigos semicríticos realizem testes de eficácia germicida contra estes microrganismos.
Momento atual: papel do enfermeiro na tomada de decisões
Com a proibição do uso do glutaraldeído para esterilização química de equipamentos críticos, o problema da sua utilização fica praticamente restrito a aplicação em endoscópios semicríticos, os quais requerem apenas a desinfecção de alto nível.
Então porque a substituição do glutaraldeído tem sido uma preocupação e encontra dificuldades na sua implementação? Pode-se supor que os profissionais de saúde estão acomodados com este princípio ativo e não apresentam disposição para modificar as suas práticas. Mas evidentemente, esta não é a única justificativa. Primeiramente, muitos dos novos produtos apresentam um custo significativo quando comparados ao método em uso. Além disto, alguns fabricantes de equipamentos endoscópicos não emitem laudo de garantia quando outro germicida que não o glutaraldeído é utilizado. Neste caso, a insegurança do profissional de saúde quanto a potenciais danos é natural, pois ele não se sente amparado para efetivar mudanças. Outro impedimento relevante é o tempo de ação recomendado. Embora muitos dos novos germicidas tenham laudos comprovando sua eficácia em tempos que vão de 10 a 20 minutos, a legislação sanitária vigente (Portaria 15, 1988) determina que o tempo de ação para desinfecção de artigos semicríticos deve ser obrigatoriamente de 30 minutos. Este anacronismo da Portaria 15 produz uma série de efeitos colaterais, impondo não somente um tempo de processo desnecessário como também aumentando os danos potenciais aos artigos processados.
Entretanto, não há dúvida de que a história do glutaraldeído é a crônica de uma morte anunciada. Outros germicidas, eficazes, seguros e pouco tóxicos encontram-se no cenário e é apenas questão de tempo para sua implementação e disseminação de uso.
Para seguir com mais segurança nesta transição, é preciso desenvolver um espírito de equipe na tomada de decisões, na qual o enfermeiro é o agente catalisador do processo e deverá demandar a participação dos profissionais médicos e engenheiros biomédicos para juntos estudarem as opções para cada serviço.
Assim, cabe ao enfermeiro realizar uma pesquisa detalhada das opções no mercado, identificando as compatibilidades entre os germicidas apresentados e o equipamento a ser processado. Neste momento, obter as informações escritas dos fabricantes é fundamental para garantir a confiabilidade das informações prestadas. Deve também identificar fatores de custo e operacionais associados as possíveis mudanças de processo. A busca de informações na literatura é essencial. Deste modo, a equipe terá subsídios suficientes para a tomada de decisões com segurança.
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Maria Clara Padoveze é Professora Doutora do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva, da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo.
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